A trégua de Natal de 1914

Soldados britânicos e alemães confraternizam na Terra de Ninguém


A incrível trégua não oficial em 25 de Dezembro de 1914.
Não há a menor dúvida de que realmente aconteceu – a trégua de Natal não oficial de 1914 – mas até hoje, muitas pessoas não estão totalmente a par dos detalhes e extensão deste notável hiato na guerra, que ocorreu durante aquelas poucas horas do quinto mês do primeiro ano de conflito.

Para a maioria das pessoas, a trégua foi observada pelos britânicos e alemães na parte mais ao sul do saliente de Ypres, na Bélgica. Entretanto, ela ocorreu em vários outros pontos do Fronte Oeste e por outros combatentes, notadamente os franceses e belgas, embora o fato que os alemães estavam situados em território francês ou belga inibiu qualquer grande demostração de boa vontade para com os openentes alemães.

Registro histórico das tréguas em tempo de guerra

Tréguas em períodos de guerra não eram tão incomuns. Exemplos de interrupções temporárias em conflitos datam de séculos atrás e incluem as guerras Peninsular e da Criméia (entre os ingleses e franceses na primeira e ingleses e russos na segunda). Histórias similares são contadas a respeido de refeições trocadas entre os lados opostos durante a Guerra Civil Americana e, em 1900, na Guerra dos Boers, na África do Sul.

De fato, em várias arenas da Primeira Guerra Mundial a tradição continuou além do Natal. O extraordinário líder da guerra de guerrilha alemão na África Leste, Coronel Paul von Lettow-Vorbeck, era famoso por suas cavalheirescas – segundo alguns civilizadas – maneiras em que ele conduzia a guerra. Por exemplo, após humilhar as forças indianas lideradas pelos britânicos na batalha de Tanga, no início de Novembro de 1914, líderes de ambos os ladosse reuniram sob uma bandeira branca para trocar opiniões acerca da ação e para compartilhar uma garrafa de brandy.

Entretanto, este estilo de cortesia foi considerado extinto com a aparição da relativamente nova forma de guerra mecanizada que caracterizou a Primeira Guerra Mundial, certamente como era combatida no Fronte Oeste. Apesar disso, não eram incomuns breves cessar-fogo serem taticamente aceitos e observados por uma ora ou mais, como durante o café-da-manhã em setores mais calmos onde apenas poucas jardas separavam as tropas aliadas das germânicas; um caso de “viva e deixe viver”.

Início com árvores de Natal e cantigas

Embora existam muitas histórias individuais acerca de como o Natal não oficial foi iniciado em vários setores, para a maior parte ele foi iniciado pelas tropas alemãs estacionadas defronte às forças britânicas onde uma distância relativamente curta separava as trincheiras ao longo da Terra de Ninguém.

Muitos soldados alemães tinham, como era seu costume na véspera de Natal, começado a montar árvores de Natal, adornadas com velas acesas – com a exceção que, desta vez, foram posicionadas ao longo das trincheiras do Fronte Oeste.

Inicialmente surpresos e, então, desconfiados, os observadores britânicos reportaram a existência delas para os oficiais superiores. A ordem recebida foi que eles não deveriam atirar mas, em vez disso, observar cuidadosamente as ações dos alemães.

A seguir foram ouvidos cânticos de Natal, cantados em alemão. Os ingleses responderam, em alguns lugares, com seus próprios cânticos. Aqueles soldados alemães que falavam inglês então gritaram votos de Feliz Natal para “Tommy” (o nome popular dos alemães para o soldado britânico); saudações similares foram retribuíadas da mesma maneira para "Fritz".

Em algumas áreas, soldados alemães convidaram “Tommy” para avançar pela “Terra de Ninguém” e visitar os mesmos oponentes alemães que eles estavam tão absortos em matar poucas horas antes. Edward Hulse, um tenente dos Scots Guards, com 25 anos de idade, escreveu no diário de guerra do seu batalhão: "Nós iniciamos conversações com os alemães, que estavam ansiosos para conseguir um armistício durante o Natal. Um batedor chamado F. Murker foi ao encontro de uma patrulha alemã e recebeu uma garrafa de uísque e alguns cigarros e uma mensagem foi enviada por ele, dizendo que se nós não atirássemos neles, eles não atirariam em nós”. Consequentemente, as armas daquele setor ficaram silenciosas aquela noite.

A notícia se espalha

Estórias começaram a se espalhar sobre visitas trocadas entre as forças aliadas (incluindo algumas francesas e belgas) e os inimigos alemães. Tais visitas não estavam restritas aos soldados rasos somente: em algumas ocasiões, o contato inicial foi feito entre oficiais, que definiram em conjunto os termos da trégua, acrescentando somente o quanto seus homens poderiam avançar em direção às linhas inimigas.

Estes termos normalmente permitiam o enterro das tropas de cada lado que jaziam ao longo da “Terra de Ninguém”, alguns mortos há apenas uns dias, enquanto outros haviam esperado meses pela dignidade de um funeral – todos, porém, tiveram que ser deixados onde haviam caído, pois metralhadoras cobriam o local onde eles jaziam na desolação entre as trincheiras opostas.

Naturalmente, homens das equipes encarregadas dos funerais entraram em contato com os membros das equipes similares do inimigo quando, então, conversas foram entabuladas e cigarros trocados. Cartas foram encaminhadas para serem entregues para famílias ou amigos vivendo em cidades ou vilarejos beligerantes.

O mais notável de tudo foi, talvez, a história da partida de futebol entre o regimento inglês de Bedfordshire e as tropas alemãs (alegadamente vencido por 3-2 pelos últimos). O jogo foi interrompido quando a bola foi murchada após atingir um emaranhado de arame farpado. Em muitos setores a trégua durou até a meia-noite de Natal; enquanto em outros durou até o primeiro dia do ano seguinte.

Reação oficial e do público

As reações à trégua de Natal vindas de várias fontes vieram em várias formas. Os Governos aliados e o alto-comando militar reagiram com indignação (principalmente entre os franceses). O Comandante-em-Chefe britânico, Sir John French, possivelmente tinha previsto a suspensão das hostilidades no Natal quando emitiu uma ordem antecipada alertando suas forças para um provável aumento da atividade alemã durante o Natal: ele, portanto, instruiu seus homens para redobrar o estado de alerta durante esta época.

Após a trágua ele escreveu severamente: "Eu emiti ordens imediatas para prevenir qualquer recorrência deste tipo de conduta e convoquei os comandantes locais para prestarem contas, o que resultou em punições severas". A igreja Católica, através do Papa Benedito XV, tinha solicitado anteriormente uma interrupção temporária das hostilidades para a celebração do Natal. Embora o Governo alemão tenha indicado sua concordância, os aliados rapidamente discordaram: a guerra tinha que continuar, mesmo durante o Natal.

Quase imediatamente à trégua, as mensagens enviadas chegaram para os familiares e amigos daqueles servindo no fronte através do método usual: cartas para casa. Estas cartas foram rapidamente utilizadas por jornais locais e nacionais (incluindo alguns na Alemanha) e impressas regularmente.

O autor de Sherlock Holmes, Sir Arthur Conan Doyle, comentou em sua história da guerra o “episódio humano em meio às atrocidades que tem manchado a memória da guerra”.

Sir Horace Smith-Dorrien, o Comandante do II Corpo britânico na época, reagiu com uma simples instrução: "O Comandente do Corpo, portanto, ordena aos Comandentes de Divisão para incutirem em todos os seus comandantes subordinados a absoluta necessidade de encorajarem o espírito ofensivo das tropas, enquanto estiverem na defensiva, por todos os meios à sua disposição. Relações amistosas com o inimigo, armistícios não oficiais (i.e. ‘nós não atiramos se vocês não atirarem’, etc.) e a troca de tabaco e outros confortos, não importa o quão tentadores e ocasionalmente agradáveis possam ser, estão absolutamente proibidos".

A visão do soldado no fronte

Nas cartas para casa, os soldados na linha de frente foram praticamente unaânimes em expressar seu espanto com os eventos do Natal de 1914.

Um alemão escreveu: "aquele foi um dia de paz na guerra; é uma pena que não tenha sido a paz definitiva".

O Cabo John Ferguson contou como a trégua foi conduzida no seu setor: "Nós apertamos as mãos, desejando Feliz Natal e logo estávamos conversando como se nos conhecêsse-mos há vários anos. Nós estávamos em frente às suas cercas de arame e rodeados de alemães – Fritz e eu no centro, conversando e ele, ocasionalmente traduzindo para seus amigos o que eu estava dizendo. Nós permanecemos dentro do círculo como oradores de rua. Logo, a maioria da nossa companhia (Companhia ‘A’), ouvindo que eu e alguns outros havíamos ido, nos seguiu... Que visão – pequenos grupos de alemães e ingleses se extendendo por quase toda a extensão de nossa frente! Tarde da noite nós podíamos ouvir risadas e ver fósforos acesos, um alemão acendendo um cigarro para um escocês e vice-versa, trocando cigarros e souvenires. Quando eles não podiam falar a língua, eles tentavam se fazer entender através de gestos e todos pareciam se entender muito bem. Nós estávamos rindo e conversando com homens que só umas poucas horas antes estávamos tentando matar!"

Bruce Bairnsfather, o autor dos famosos cartuns ‘Old Bill’, resumiu os sentimentos de muitas das tropas britânicas quando ele escreveu: "Todos estavam curiosos: ali estavam aqueles malditos comedores-de-salsicha, que tinham começado aquela infernal guerra européia e, ao fazer isso, nos enfiaram no mesmo lamaçal junto com eles... Não havia um átomo de ódio em qualquer dos lados aquele dia e ainda, no nosso lado, nem por um momento havia a vontade de guerrear e a vontade de deixá-los relaxados".

Uma vez e somente uma

No entanto, a reação foi de tal monta que precauções especiais foram tomadas durante os Natais de 1915, 1916 e 1917, usando mesmo o expediente de realmente aumentar os bombardeios de artilharia. Os eventos do final de Dezembro de 1914 nunca mais foram repetidos.

Investigações foram conduzidas para determinar se a trégua não oficial foi de alguma maneira organizada de antemão; o resultado da apuração foi negativo. Aquilo foi um evento genuinamente espontâneo, que ocorreu em alguns setores mas não em outros.

Embora a história dos conflitos inclua numerosos exemplos de gestos generosos entre inimigos, a trégua de Natal no Fronte Oeste foi talvez o mais espetacular e, certamente, o mais renomado de seu tipo. Boa vontade para todos os homens – por um período.

Mesmo naquele aparentemente pacífico dia de Natal, a guerra não foi completamente esquecida; muitos dos soldados que apertaram as mãos de Tommy ou Fritz em 25 de Dezembro de 1914, trataram de observar a estrutura das defesas do inimigo, de modo que se pudese tirar vantagem de qualquer falha nas defesas no dia seguinte...


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O Pensador, de Rodin, em sua eterna crise existencial .

O gênio da porta ao lado


Do jornal 'The Mail' de domingo - 03.12.2006
por David Sore

Sua gritaria podia começar a qualquer hora da noite ou do dia, mas frequentemente parecia começar justo na hora de eu ir pra cama. Havia batidas e barulho de coisas se quebrando vindos da porta ao lado, enquanto a mobília era destruída, além de um latido incessante, mais parecido com um animal do que com um humano.

Isto podia durar duas horas e, como uma criança pequena, isso me apavorava. Geralmente eram apenas berros incoerentes e raivosos, mas bem de vez em quando dava pra se distinguir palavras. Elas eram sempre as mesmas: 'Roger Waters #*&@#$! Eu vou te matar, seu *&%$#@.' Não era muito divertido ter Syd Barrett como vizinho.

É claro que eu não sabia quem era ele naquela época. Somente mais tarde que eu percebi que ele era uma lenda do rock, um dos membros fundadores do Pink Floyd, que tinha arrebanhado Paul McCartney, David Bowie e Pete Townshend entre seus fãs. Recentemente, foi revelado que Syd, que morreu em julho, deixou 1,2 milhões de libras em seu testamento.

Ele era o gênio compositor por trás da maioria do material do início do Floyd, incluindo os singles de sucesso See Emily Play e Arnold Layne, mas seu crescente comportamento bizarro o levou a deixar a banda em 1968, logo depois do lançamento do seu primeiro disco.

Pink Floyd - com Roger Waters, Richard Wright, Nick Mason e o substituto de Syd, David Gilmour - veio a se tornar uma das bandas de rock mais bem sucedidas de todos os tempos. A carreira de Syd se atrofiou depois de alguns discos solo. Então ele se mudou para a porta ao lado da minha.

Eu morei com minha família na Praça de St. Margaret, no.7, em Cambridge. Era um beco tranquilo com casas semi-conjugadas no estilo dos anos 30. Winifred, a mãe de Syd, morava na porta ao lado, no número 6, e em 1981, quando eu tinha seis anos de idade, seu filho retornou de Londres pra morar com ela.

A primeira vez que o vi, eu estava brincando com minha bicicleta em nossa garagem. Ele saiu de sua casa com uma tesoura de cortar grama e uma serra, um homem impossível de se descrever com seus 30-35 anos com o cabelo ralo. Sem falar nada, ele começou a cortar árvores e galhos no seu jardim. O jardim já tinha sido lindo - os moradores anteriores trabalhavam no Jardim Botânico da Universidade de Cambridge - mas era como se ele fosse destruído por um tornado depois que Syd terminou. Ele cortou todos os troncos de árvore, carregou-os até seu quintal e os queimou numa enorme fogueira. Meus pais ficaram muito indignados, mas eles não podiam fazer nada. Nós não tínhamos idéia que isto era o começo de uma rotina que se repetiria de novo e de novo. Sempre que os arbustos cresciam de novo, Syd os arrancava e os queimava. Ele também destruiu e queimou seu 'portfolio' - pinturas psicodélicas, que vagamente lembravam Jackson Pollock. As fogueiras eram enormes, com chamas de 2 metros de altura, mais ou menos, o que causava uma grossa névoa de fumaça branca por sobre toda a rua.

A mãe de Syd, que era amiga de meus pais, estava sempre se desculpando, mas ela não podia fazer nada para detê-lo. E nós logo aprendemos que não adiantaria protestar com o próprio Syd. Qualquer tentativa de impedi-lo de continuar sua rotina seria respondida, no máximo, com um olhar vazio. Às vezes ele podia soltar o verbo e fazer ameaças. Quando Syd estava em uma de suas piras de sair queimando tudo, tudo o que a gente podia fazer era desistir e entrar em casa, fechando todas as portas e janelas. Syd realmente não se preocupava.

Mas as fogueiras eram a menor de nossas preocupações. A paz era frequentemente abalada pelo som de copos se quebrando. Quando os demônios internos que atormentavam Syd se superavam, ele podia arremessar coisas através de suas janelas. Isso aconteceu pelo menos umas cem vezes. Seu gramado estava constantemente desarrumado por conta dos vidros quebrados, canecas, panelas e enfeites. Às vezes a "quebração" de janelas começava no meio da noite e eu deitava na cama com medo que ele começasse a atacar nossa casa. Eu estava convencido que um dia ele acabasse com suas próprias janelas e viesse quebrar as nossas. De vez em quando, uma janela era consertada, e então quebrada novamente no dia seguinte. Syd sozinho mantinha os lucros das vidraçarias da região.

Mas os acessos de gritaria eram de longe o aspecto que mais incomodava no seu comportamento. Ouvir um homem adulto se lamentando e soltando gritos estridentes durante horas era pavoroso para mim e para minhas duas irmãs. Nós não entendíamos de doenças mentais. Até onde a gente sabia, nós éramos vizinhos de um lunático inconsequente e possivelmente perigoso.
Nossos maiores medos se confirmaram na noite em que Syd foi levado numa camisa-de-força.
Nós já tínhamos ligado pra polícia anteriormente algumas vezes. Eles chegavam e trocavam umas palavras com a mãe de Syd e iam embora sem tomar mais nenhuma atitude. Mas nesta ocasião seu surto tinha sido particularmente violento e nós descobrimos mais tarde que ele tinha
atacado sua mãe. Ela chamou a polícia. Eu me lembro de ficar espiando na janela e ver Syd sendo levado embora à força. Sua mãe estava muito desapontada e estava implorando para ele se acalmar mas ele cuspia uma pá de palavrões. Eu gostaria que ele nunca mais tivesse voltado. Mas ele voltou alguns dias depois e sua mãe se mudou para a casa da filha, Rosemary. Ela não podia mais lidar com Syd.

Depois disso, Rosemary o procurou. Ela o levava fazer compras em Sainsbury toda semana. A loja ficava a 10 minutos de distância. Ela o pegava, dirigia com ele até lá e andava pelos corredores, como se ele fosse uma criança, depois o levava de volta. Ele ficava sentado no carro até Rosemary abrir a porta pra ele e o levar pra dentro de casa. Ele parecia que realmente não sabia onde ele estava ou o que estava acontecendo. Com sua mãe ausente, seu comportamento continuava como antes. Nossa família fazia o papel de um "sistema de prevenção", ligando para sua irmã quando ele ficava fora de controle. Ela chegava e acalmava a situação.

Foi dito que Syd tinha pouco interesse no Pink Floyd depois de deixar a banda, ainda que as fogueiras e janelas quebradas fossem mais frequentes em 1986, quando o Floyd estava na mídia por causa de uma disputa legal entre Waters e os outros membros. Podia ser coincidência, mas Syd parecia culpar Waters por qualquer coisa - foi o único nome que ele citava nos seus gritos e ameaças. Eu costumava me preocupar em como nós nos protegeríamos caso ele se tornasse destrutivo e nos atacasse. Syd me lembrava Jack Nicholson em O Iluminado.

Em todos estes anos, ele nunca me disse mais que algumas palavras de uma vez. Se a gente passava na rua, ele às vezes conseguia soltar um murmurado 'oi', mas quase sempre simplesmente apressava o passo, de cabeça baixa. Às vezes ele até atravessava a rua para me evitar. Uma constante massa de fãs vinha visitá-lo. Eles frequentemente batiam em nossa porta. 'É aqui que mora o Syd?' Nós dizíamos que não. A gente sabia que ele não queria ser perturbado e que, se fosse, poderia mandar todo mundo à PQP. Os fãs às vezes não aceitavam um não como resposta e batiam na sua porta com força. Geralmente não havia resposta, mas de vez em quando ele abria a porta, provavelmente por engano. Ele podia até bater a porta na cara dos fãs assim que percebesse quem eles eram.

Seu psicológico se deteriorou depois da saída de sua mãe. Ele não se preocupava em abotoar sua camisa, se ao menos ele se preocupasse em usar uma. Usava calças que eram muito grandes pra ele. Ele parecia descabelado. Nós às vezes o vimos andando na rua usando apenas a parte de baixo do pijama. Ele parecia viver de cafés-da-manhã gordurosos e frequentemente deixava sua frigideira queimar. Nós podíamos ver as chamas alcançando o teto da cozinha mas não havia sinal de Syd. Ele tinha uma concepção nada segura a respeito do fogo.

Ele bebia muito, provavelmente uma garrafa de Whisky por dia. Syd era também um fumante inveterado. Quando adolescente eu trabalhei na agência de notícias local. Syd entrava lá quase todo dia atrás de cigarros. Ele sempre comprava 60 e às vezes levava tabaco a granel e fumo de corda também. Ele comprava marcas diferentes em cada vez, pedindo por '20 Rothmans, 20 B&H, 20 Embassy no.1', ou '20 JPS, 20 Embassy Regal, 20 Marlboro'. Ele pegava os cigarros e saía sem falar mais nada. Ele nunca levava dinheiro, mas deixava grandes contas que sua irmã costumava pagar. Até então, eu sabia quem ele era e achava difícil de conciliar sua reclusão na meia-idade, e os enormes problemas em se relacionar com o mundo, com o músico boa-pinta que eu vi sorrindo em fotos antigas. Como o autor de letras poéticas ricas em imaginação surreal poderia estar reduzido a alguém que malmente conseguia formar uma frase completa? Eu tinha lido o suficiente pra saber que a crítica atribuía isso a um colapso causado pelo LSD no auge de sua fama. Syd era um exemplo vivo do perigo que causam as drogas.

Em uma ocasião ele veio até a loja onde uma revista de música trazia uma foto do Pink Floyd da época de Syd na capa. Eu disse a Roger - seu nome real, Syd era um apelido - 'Você está na capa da Mojo hoje, Roger.' Ele pareceu surpreso. 'Eu ficarei com ela', ele disse. Tive a impressão que ele havia gostado. Nos 25 anos em que morei na Praça St. Margaret, eu o vi sorrir apenas uma vez. Foi nos anos 90, quando eu comprei um Lancia Delta HF Turbo - uma réplica do carro de rali que a Martini patrocinava nos anos 80. Eu estava muito orgulhoso e um dia eu estava lavando o carro, segurando uma mangueira em cima do telhado, portanto a água formava uma cascata. Syd veio de seu jardim e ficou me olhando com um grande sorriso em seu rosto. Ele não era conhecido como um entusiasta do automobilismo - seu único 'veículo' era uma velha bicicleta surrada. Eu creio que a cena o alegrou porque ele achou que eu estava regando meu carro, como se ele fosse uma planta. Talvez isso o tenha levado de volta aos seus anos 'hippies', afogados no LSD.

Mas ele não era de todo ruim. Quando ele não estava tendo um de seus ataques, ele era bem quieto. Eu nunca ouvi sua televisão. Eu o ouvi tocar (ouvir) música um punhado de vezes - e sempre música clássica ou jazz moderno, nunca pop ou qualquer trabalho próprio seu.

Nos seus últimos anos, seu comportamento se tornou menos errante e a gritaria também parou. Ainda havia uma fogueira de vez em quando. Nós até recebemos alguns cartões de Natal dele. Ele mesmo os fez, desenhos de Natal lindamente feitos - sinos e plantas características do Natal em um cartão branco. 'Tenham um Natal muito feliz, de Roger', dizia a mensagem. Um ano, quando eu li no jornal que era seu aniversário, eu deixei um cartão na sua caixa de correio. Quando o vi depois ele disse 'oi' e fixou seu olhar no meu por alguns segundos. Ele parecia estar me agradecendo. Depois disso eu parei de temê-lo. Eu sabia que ele tinha uma alma profundamente perturbada, precisando de simpatia mais do que qualquer outra coisa.

Syd morreu em casa em julho, devido a complicações crescentes de sua diabetes. Ele tinha 60 anos e esteve no Hospital de Addenbrooke por mais ou menos três semanas antes disso. Sua irmã nos disse que quando ele voltou pra casa ele precisaria de uma enfermeira que morasse lá para cuidar dele. Ele ficou em casa apenas um dia e meio e então faleceu. Sua casa foi recentemente vendida e eu fui vê-la enquanto ela estava à venda. As cores da casa poderiam ser descritas como interessantes - um quarto é laranja, outro azul, vários são uma combinação de laranja, azul e rosa - e a cozinha é a prova das aventuras frustradas de Syd quanto ao 'faça você mesmo': prateleiras frágeis e com formatos estranhos. Uma imagem me encanta. Um hipopótamo de brinquedo estava pregado a uma das fechaduras. Isso era típico de Syd: misterioso, bizarro e um pouquinho, bem, louco. Eu sinto muito que ele tenha morrido - mas não sentirei saudades.

Filme raro de Syd Barrett sobre efeitos de cogumelos alucinógenos




- Moqtada! Moqtada!
- Para o inferno!!!
- É assim que vocês demonstram a coragem dos árabes?
- Para o inferno!!!
- Para o inferno que é o Iraque?

por Robert Fisk

Assim, o antigo aliado dos Estados Unidos foi sentenciado à morte por crimes cometidos quando era o melhor amigo de Washington no mundo árabe. Os americanos sabiam tudo sobre suas atrocidades. Mas ontem lá estávamos nós declarando que a sentença representava 'um grande dia para o Iraque', segundo a Casa Branca. Foi também o que disse Tony Blair quando Saddam foi desentocado do buraco em que estava escondido, em dezembro de 2003. E agora vamos enforcá-lo. Outro grande dia.

É difícil conceber um monstro mais merecedor do cadafalso, de preferência para execução às mãos do carrasco que seu regime mesmo empregava, Abu Widad, responsável pelas execuções da penitenciária de Abu Ghraib - que costumava golpear suas vítimas na cabeça com um machado, caso ousassem condenar o líder do Baath antes de serem enforcadas. Mas Abu Widad terminou na forca, em 1985, depois de descobrirem que foi subornado para enforcar um inocente, em lugar do verdadeiro condenado.

O desastroso inferno que infligimos ao Iraque é tão horrível que nem mesmo podemos sustentar essa afirmação. A vida é pior, agora. Ou, melhor, a morte é um destino mais freqüente para mais iraquianos do que o era no caso dos curdos e xiitas nos tempos de Saddam. Por isso, não podemos alegar superioridade moral alguma. Nós apenas praticamos abusos sexuais contra prisioneiros, assassinamos alguns suspeitos e praticamos alguns estupros, além de termos invadido ilegalmente um país, o que custou ao Iraque apenas 30 mil vidas, nos cálculos de George W. Bush.

Saddam era muito pior. Não seremos levados a julgamento. Não seremos enforcados. 'Allahu Akbar', bradou o homem execrável. 'Deus é grande.' Não deveria nos surpreender. Foi ele que insistiu que essas palavras fossem inscritas na bandeira iraquiana, a mesma bandeira que hoje tremula sobre o palácio do governo que o condenou depois de um julgamento no qual o genocida iraquiano foi formalmente proibido de descrever sua relação com Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa de George W. Bush. Lembram-se daquele aperto de mão? E Saddam tampouco pôde falar do apoio que recebeu de George Bush pai.

Eis algumas das coisas sobre as quais Saddam não pôde depor: vendas de produtos químicos, tão repulsiva e que tanto incomodava Bush filho e lorde Blair de Kut al Amara quando decidiram depor Saddam em 2003 - ou terá sido 2002? Em 25 de maio de 1994, a Comissão de Assuntos Bancários, Habitação e Assuntos Urbanos do Senado americano divulgou relatório sobre as exportações de produtos químicos e biológicos de possível uso bélico pelos Estados Unidos ao Iraque.

Essa foi a guerra que levou à libertação do Kuwait por nossas forças, em 1991, e o relatório informava ao Congresso sobre as vendas de agentes biológicos produzidos por empresas dos Estados Unidos, com aprovação do governo americano.

O relatório ainda afirma que os EUA forneceram a Saddam material licenciado de 'duplo uso', que auxiliou no desenvolvimento dos programas de guerra química, biológica e de mísseis iraquianos.

Entendo perfeitamente que não era possível permitir que Saddam falasse a esse respeito. John Reid, secretário do Interior britânico, disse que o enforcamento de Saddam era 'a decisão soberana de um país soberano'. Graças a Deus ele não citou as 200 mil libras em tiodiglicol, um dos dois componentes do gás mostarda, que exportamos ao Iraque em 1988, e outras 50 mil libras da mesma substância vendidas em 1989.

Também enviamos cloreto de tiodiglicol ao Iraque em 1988, ao preço de apenas 26 mil libras. Eu sei que esse componente poderia ser usado para produzir tinta para esferográficas e corantes para tecidos. Mas trata-se do mesmo país, o Reino Unido, que oito anos depois se recusaria a vender vacinas contra difteria às crianças iraquianas, sob a alegação de que elas poderiam ser usadas para produzir armas de destruição em massa.

Nós, no Ocidente, mantivemos o silêncio quando Saddam massacrou 180 mil curdos durante a limpeza étnica de 1987 e 1988. E será que nos cabe ousar falar de nossa traição aos iraquianos que tanto amávamos quando invadimos seu país? Se o fizermos, teremos de condenar Saddam pelo massacre de incontáveis xiitas inocentes, além dos curdos, depois que os primeiros encetaram uma rebelião contra o regime baathista a nosso pedido específico. Milhares de pessoas morreram porque as traímos e deixamos que combatessem as hordas de Saddam sem ajuda. 'Tumultos' foi a palavra que o infame 'dossiê da enrolação' de lorde Blair usou para descrever essas atrocidades, em 2002, porque classificar a situação como um levante (o que de fato era) nos forçaria a questionar quem foi o responsável por provocar esse banho de sangue. A resposta? Nós, os britânicos.

Mas agora demos ao povo iraquiano pão e circo, o enforcamento de Saddam. Impusemos justiça ao homem cujo país invadimos e fizemos se dividir. O estranho é que o Iraque hoje está tomado por assassinos, estupradores e torturadores.

Muitos trabalham para o atual governo, que apoiamos. Eles não serão julgados. Nem enforcados. Essa é a extensão do nosso cinismo. Da nossa vergonha.

Em algum momento a justiça e a hipocrisia já estiveram unidas de forma tão obscena?".



* Moqtada al-Sadr, cujo pai, um clérigo xiita, foi morto por ordem de Saddam, era chefe de uma milícia de 60.000 homens responsável pelo assassinato em massa de sunitas.



O bode da esquerda

"Chamar o governo brasileiro de neoliberal é como apresentar Adam Smith como o fundador do marxismo"
Não sei o que você pensa sobre a esquerda, mas sei o que a esquerda pensa sobre você. A esquerda pensa que você acredita em qualquer lorota. Na semana passada, apareceu um novo culpado pelo achincalhamento petista. O problema, segundo essa nova interpretação, não é roubalheira do PT. O pecado original foi a cúpula do PT ter aderido à direita. Veja o que escreveu um dos papas da sociologia brasileira, o ex-petista Francisco de Oliveira: "O 'escândalo' maior não reside na revelação das 'mutretas' – escandalosa não é a desconstrução do PT, é a construção da vitória de Lula e de seu governo em bases neoliberais". No capitalismo contemporâneo, acrescenta Francisco de Oliveira, o Estado não governa para a sociedade. Curva-se aos interesses econômicos e faz a sociedade curvar-se com ele.
A academia fugiu da escola. Os professores não sabem mais do que estão falando. O neoliberalismo prega a redução do Estado na economia e na sociedade e uma ampla abertura ao exterior. O Estado, para ser neoliberal, deveria cuidar só da Justiça, polícia, Exército, diplomacia, arrecadação de impostos e mais uma ou duas tarefas típicas do ente governamental. Isso não é o que se vê no Brasil.
O oposto do neoliberalismo é o Estado forte que nada concede ao mercado. Alguns dos mais extremados expoentes dessa categoria são os modelos cubano e norte-coreano, além dos sistemas implantados no século passado por Stalin, Mao, Pol Pot e Hitler. Pode-se ter certeza de que o professor Francisco de Oliveira, sumidade em seu campo de estudo, não está sugerindo que o Brasil siga esses exemplos. Frei Betto, o guia espiritual de Lula, acha que o Brasil deveria mirar-se no exemplo de Fidel Castro, mas Frei Betto não é nenhum Francisco de Oliveira. Então, o que estaria pregando o eminente sociólogo da USP? Um Brasil, por assim dizer, capitalista mas nem tanto?
Informo aos detratores da utopia neoliberal, como Francisco de Oliveira, que o Brasil é um dos países menos neoliberais do mundo. Há formas objetivas de medir isso. O governo brasileiro, fechado e centralizado, se apossa de 36% do PIB em impostos. Toma para si 68% da poupança destinada ao crédito no país. Tem a mais alta carga de juros do planeta. É um dos países mais burocratizados do mundo. Cobra 100% de encargos sobre os salários dos trabalhadores, contra 9,5% no Chile. "Em 2003, o Brasil foi o sétimo país com menor fluxo de comércio e o terceiro com menores importações, como proporção do PIB, de um conjunto de 145 países", escreve Armando Castelar Pinheiro, economista do Ipea.
Num levantamento deste ano sobre o grau de liberdade econômica feito pelo Instituto Fraser, do Canadá, o Brasil aparece como um dos menos livres do mundo, em 88º lugar, numa lista encabeçada por Hong Kong, o mais aberto, Cingapura, Nova Zelândia, Suíça e Estados Unidos. O Brasil, no fim do ranking, é mais fechado do que a China comunista e a Índia, de tradição socialista. Chamar o governo brasileiro de neoliberal é como apresentar Adam Smith como o fundador do marxismo. E, para não perder o fio da meada, o mal do PT não foi o neoliberalismo. Foi roubalheira mesmo.

Tales Alvarenga

A sina do povo da Ilha de Páscoa

Localizada no oceano Pacífico a 3200 km da costa do Chile, a Ilha da Páscoa, ou Rapa Nui como a chamam os polinésios, intrigou os europeus antes ainda que o primeiro deles pussesse os pés na ilha. No dia da páscoa do ano de 1722 o capitão Jacob Roggeveen ao avistar a desconhecida ilha, intimidou-se com o que, sob a difusa luz do entardecer, pareciam ser ameaçadores gigantes protegendo a costa. Os gigantes, descobriu o cauteloso capitão na manhã do dia seguinte, eram impressionantes estátuas de pedra, construídas por um povo que chamava à sua ilha de "Te-Pito-Te-Henua", ou "Umbigo do Mundo".

Ao contrário da maioria das outras ilhas daquela parte do mundo, o terreno não tinha grandes árvores e a grama era tão seca que, a distância, parecia areia. Recebido por uma comitiva de nativos em canoas frágeis e cheias de remendos, Roggeveen resolveu desembarcar e surpreendeu-se com as gigantescas figuras de pedra, esculpidas na forma de rostos humanos, espalhadas ao longo do litoral. “Ficamos muito espantados, pois não compreendíamos como essas pessoas, que não dispunham de cordas fortes ou madeira adequada para construir máquinas, conseguiram erguer aquelas imagens com mais de 10 metros de altura”, escreveu em seu diário de bordo.

No interior da ilha, dentro da cratera de um vulcão extinto onde as estátuas costumavam ser esculpidas, o ambiente era fantasmagórico. As ferramentas utilizadas pelos escultores espalhadas pelo chão, estátuas inacabadas e outras deixadas para trás nas estradas que levavam ao litoral davam a impressão de que o lugar havia sido abandonado.

Quando os primeiros polinésios chegaram lá, provavelmente há cerca de 1 400 anos, encontraram um pequeno paraíso. Eram 166 quilômetros quadrados cobertos por uma densa floresta subtropical que crescia sobre o solo fértil de origem vulcânica do qual a ilha é formada. Entre a vasta vegetação nativa, a planta mais comum era uma espécie de palmeira alta e robusta que só existia ali. Além de ter uma madeira forte o bastante para a construção de embarcações e para ajudar a transportar os moais, a palmeira fornecia nozes para a alimentação dos moradores.

A riqueza da fauna também se refletia nas panelas da ilha. Carne de golfinho, de focas e de 25 tipos de pássaros selvagens compunham o banquete – tudo cozinhado no fogo da lenha retirada da floresta. Também, haja comida. Pelos cálculos da arqueóloga Jo Anne Van Tilburg, da Universidade da Califórnia, cerca de 25% dos alimentos produzidos na ilha eram consumidos na intensa produção e transporte de estátuas. Estima-se que eram necessárias até 500 pessoas, utilizando cordas e uma espécie de trenó feito de grandes toras de palmeiras, para arrastar os moais por 14 quilômetros até o litoral.

A partir do ano 1200, a produção de estátuas entrou num ritmo mais acelerado, que durou por cerca de 300 anos. Era preciso cada vez mais madeira, cordas e alimentos para sustentar a crescente disputa entre os clãs que dominavam a ilha, que competiam para ver quem erguia as maiores estátuas. A competição, no entanto, acabou sem vencedores. Pouco depois de 1400, a floresta já não existia e a última palmeira foi cortada, extinta juntamente com outras 21 espécies de plantas nativas. Com a floresta, foram-se as fibras que eram transformadas em cordas, utilizadas em conjunto com as toras no transporte dos moais. Sem troncos fortes para construir canoas resistentes, capazes de ir até alto-mar, a pesca diminuiu muito e a carne de golfinho virou raridade nas refeições. As colheitas também foram prejudicadas pelo desmatamento, já que não havia mais vegetação para proteger o solo da erosão causada pelos ventos e pela chuva. Com seu habitat devastado, todas as espécies de pássaros que voavam pela ilha foram finalmente extintas.

Sem ter o que comer, o número de habitantes foi reduzido a um décimo dos 20 mil que chegaram a viver na ilha no auge do culto aos moais. Os moradores, famintos, finalmente cederam ao canibalismo. Em vez de ossos de pássaros ou golfinhos, arqueólogos passaram a encontrar ossos humanos em escavações de moradias datadas desse período. Muitos deles foram quebrados para se extrair o tutano. Até hoje, um dos maiores insultos que se pode dizer a um inimigo na ilha da Páscoa é algo como “tenho a carne da sua mãe presa entre meus dentes”. Não sobrou madeira nem pra palito.

A piada do separatismo

Roberto Pompeu de Toledo


J
á que o Brasil, como se sabe, é um país do Leste Europeu, mais dia, menos dia tínhamos mesmo que enfretar essa desgraça – a eclosão da questão das nacionalidades. Afinal, que têm a ver os baiano-korobovskis, do Norte, sabidamente mulçumanos, embora às vezes disfarçados de adoradores de mães-de-santo, com , digamos, os paraneslavos de Kuritibogrado, do Sul, cristãos de rito ortodoxo-grego? E as diferenças de língua, então? Como pode se entender um país que abriga desde os piauivskos de Teresinisburg, um povo que fala um idioma singular, só aparentado, e mesmo assim vagamente, com o húngaro, o finlandês, o vogul e o ostiak, até as minorias étnicas do Gauchistão, com seus dialetos próximos do turco, quando não do persa, e sua escrita que emprega do alfabeto árabe aos hieróglifos egípicios ?

Mais dia, menos dia tínhamos mesmo que enfrentar o problema, e eis então que surge no país, como já surgira na Iugoslávia, ao som de bombas, e na União Soviética, ao embalo da infelicidade de Mikhail Gorbachev, a desgraça do separatismo. Um instituto de opinião chamado Bonilha, de Curitiba, fez uma pesquisa mostrando que 41% dos sulistas gostariam de se separar do Norte. O assunto começou a fazer sua aparição em rodas de políticos, acadêmicos, empresários e assimilados. Editorialistas de jornal, com a pompa e a circunspecção que caracterizam a raça, chamaram a questão de ‘‘delicada’’ e nos convidaram à reflexão.

Delicada o quê, cara pálida? A questão seria delicada se não fosse ridícula. Achar que o separatismo tem um mínimo de seriedade, no Brasil, é tão absurdo quando imaginar que ficamos nos Balcãs, ou nas franjas da Eurásia, e portanto estamos no mesmo barco dos povos que se desagregam junto com o poder comunista.

Na verdade, para ser pomposo e circunspecto como um editorialista de jornal, se há alguma coisa que deu certo no Brasil foi a unidade nacional. Muitas outras deram errado, do atraso na industrialização à distribuição de renda. Na construção da nacionalidade, ao contrário, uma série de audácias e outros tantos golpes de sorte acabaram por assegurar, ao longo da História brasileira, primeiro um amplo espaço, com fronteiras consolidadas, e, segundo, a inserção, aí dentro, de uma ponta a outra dessa vastidão continental, de um povo que fala a mesma língua e tem mais ou menos a mesma cabeça. Inventar que existe uma questão nacional, no Brasil, ou de peculiaridades regionais que justificariam o separatismo, só pode ser piada.

Se é piada, por que o assunto mereceu a atenção de editorialistas e institutos de opinião? Simples.

Quanto aos editorialistas – ou raças próximas, como a dos cientistas políticos – o problema é que vivem de inventar teorias. Então, criaram uma segundo a qual o que se observa no Leste Europeu é uma tendência universal. Se há a questão dos sérvios contra os croatas, por que não haveria a dos alagoanos contra os sergipanos? E se há, ente armênios e azerbaijanos, o problema de Nagorno-Karabakh, de maioria armênia, mas dentro do territorio do Azerbaijão, por que não supor que, entre São Paulo e a Paraíba, não haveria o problema do bairro do Brás, incrustada na capital paulista mas de ampla população nordestina, feiras como a de Caruaru e cheiro de azeite-de-dendê no ar?

Quanto aos institutos de opinião, a questão é que sofrem de falta de assunto, nas entressafras das campanhas eleitorais. Então, fazer o quê ? Houve um que recentemente incluiu, entre as opções que apresentava aos consultados, a de ‘‘eliminar o presidente’’. Eliminar! Observe-se que o respeito às instituições e, mesmo, ao Código Penal. Claro que uma boa porcentagem de gente cravou sim, assim como, na pesquisa do Bonilha, cravou no separatismo. Em tempos de penúria e baixo-astral, vale tudo. Caso se apresentasse a opção ‘‘eliminar a mãe’’, certamente também seria bem votada. E se em vez de se perguntar se o gaúcho queira se separar do Nordeste, ou o cearense do Sul, se perguntasse se os pesquisadores de opinião deveriam ser confinados na Sibéria, é possivel que a alternativa atraísse muita gente.

Antes que se esqueça, e para encerrar o assunto: o problema do Brasil é que ele já está separado. Não horizontalmente, mas verticalmente. O que existe não é um país de uma lado e outro de outro, e sim um embaixo e outro em cima. A Bélgica e a India. Eles não se distribuem em fronteiras definidas no mapa, como as repúblicas soviéticas, mas se interpenetram. As vezes, um cidadão é vizinho do outro, mas um mundo os separa.

Em outras palavras, o problema do Brasil é o apartheid. Este, sim, valeria a pena enfrentar. Seria uma briga para unir o país, não para separar.

--artigo de 1991--

Propina em Linha Reta


















Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco; (em vão)
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza,

Não irei sozinho nessa barca.

Poema adaptado de Álvaro de Campos.

Banco Rural se recusa a trabalhar de novo com Caixa 2

Empresa: Banco Rural
Autor: Douglas Adamoski

Olá, serviço de Atendimento do Banco RURAL.Acompanhando pelos meios de comunicação todo o escândalo envolvendo esta instituição e o esquema de caixa dois no governo nacional, gostaria de saber se o Banco RURAL está oferecendo o mesmo serviço para candidatos a prefeito.Estou interessado em ingressar na política, e como preciso de pessoas sérias e experientes para administrar o caixa dois da minha campanha, acredito que o Banco RURAL, com toda sua experiência no ramo poderia me auxiliar nessa empreitada.Eu precisaria arrecadar fundos para bancar a publicidade da campanha, manter um esquema de compra de vereadores além de colocar o fundo de pensão dos servidores municipais no Banco RURAL para lucrar em cima do mesmo. Vocês teriam algum tipo de "Pacote de serviços" que supriria todas essas necessidades? Deixo claro que, após a eleição, priorizaria o Banco RURAL ou qualquer um escolhido pelo mesmo, nas licitações municipais.
Gostaria de saber também se os senhores dispõem de um serviço de transporte de dinheiro mais eficiente, pois não gostaria de utilizar cuecas para transportar o dinheiro desviado, pela insalubridade do local.
Obrigado pela atenção.

Caro Douglas,
O Banco Rural já se posicionou e reafirma que não compactuou com os depósitos, pois não sabíamos de tais movimentações bancárias. Tanto se faz que o Banco Rural informou qualquer retirada acima de R$100 mil de acordo com as normas do COAF ( Conselho de Administração Financeira) respeitando a legislação vigente. Seguem os comunicados publicados nos maiores veículos de comunicação do país recentemente).
COMUNICADO
Com o objetivo de esclarecer assuntos veiculados pela imprensa, recentemente, o Banco Rural esclarece: (...)
Superintendência de Marketing e ComunicaçãoBanco Rural

Fonte: cocadaboa.com

Buzz Aldrin, um desconhecido

Buzz Aldrin pisando na Lua, ressentido: "Linda vista", exclama

Eventos solenes pedem frases solenes. Desde que fora escolhido para ser o primeiro homem a pisar na Lua, Neil Armstrong, o comandante da Apolo 11 ouvira sugestões que incluíram de passagens da Bíblia a versos de Shakespeare.

Não podia ser simplesmente uma frase mais natural como "quanta poeira", menos pretenciosa, como "quem diria, conseguimos", mais útil como informação "andar aqui é fácil/difícil/gostoso/dói a perna" ou mais realista "estou preocupado com a volta", como Roberto Pompeu de Toledo uma vez protestou, ao invés de ‘‘este é um passo pequeno para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade’’?

Definitivamente não. E Toledo desconhecia ou omitiu que na verdade, havia um receio que a primeira palavra de um homem na Lua seria ‘’socorro !’’ Um evento de tal magnitude envolvia certos riscos, que são desnecessários expô-los aqui.

Pois bem, Armstrong e sua frase entraram para a História. Desafio o leitor a dizer o nome dos outros astronautas do projeto Apolo. Um desceu juntamente com Armstrong no modulo Lunar Eagle, foi o segundo homem a pisar na Lua, 15 minutos após Neil. O outro permaneceu orbitando a Lua. Poucos sabem, o único a ficar realmente famoso foi Armstrong. O nome do segundo homem é Buzz Aldrin, e Michael Collins foi quem permaneceu em órbita.

Pobre Aldrin. Ainda convalescendo dos surtos de inveja que o assaltaram depois da escolha de Armstrong, ao pisar em solo Lunar, exclamou: "Linda vista".

E por que coube a Armstrong pisar a Lua pela primeira vez na História? Uma resposta óbvia é porque era ele o comandante da missão.

Mas Aldrin não achava as coisas tão simples. Nem sua família. "Por que você não foi o primeiro?", perguntou-lhe o pai ao recepcionar o astronauta. Depois de deixar o programa espacial, o segundo homem a descer na Lua quase sucumbiu à depressão e ao alcoolismo, enquanto Armstrong recebia os louros e a atenção de todos pela conquista.

Mas há uma explicação menos louvável para a escolha Armstrong. Mesmo sendo o chefe da missão, Armstrong não era o mais importante. Como já foi dito, suspeitava-se que ele gritaria por socorro ao pisar na Lua, e somente uma pessoa dispensável poderia correr tal risco. Aldrin não poderia, porque era ele o piloto do Módulo Lunar Eagle, que os levaria de volta ao encontro de Collins, que orbitava a Lua no Columbia. E este era mais importante que Aldrin, pois era o responsável pelo retorno à Terra.

Essa história ilustra um dos pincípios do sistema corporativo. O seu chefe muitas vezes será um sujeito mais incompetente que você, pois esta na chefia porque é o lugar onde ele poderá fazer menos estragos. Mas não se engane, será sempre dele os méritos do seu trabalho.

Pobre Aldrin.

--Doutorsmith--

O Grande Desastre Aéreo de Ontem


Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice.
E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius.
Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor.
Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires.
Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida.
Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda.
E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa.
E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos.
Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega!
Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento.
Chove sangue sobre as nuvens de Deus.
E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

O cerco se fecha em Salim

Maluf ao promotor: "Por que o senhor me odeia?"

O Ministério Público tem hoje nada menos do que 8 quilos de documentos provando que o ex-prefeito é beneficiário de pelo menos duas contas milionárias de empresas offshore (a Red Ruby, em Cayman, e a White Gold Foundation, em Liechtenstein) e que sua família – incluindo sua mulher – movimentou, desde a década de 90, outras dezenas de contas nos Estados Unidos, França, Suíça e Liechtenstein.


Arnaldo Jabor - Dirceu e Jefferson salvaram o Brasil


Ontem falei com Nelson Rodrigues num velho telefone preto que ele atende lá no céu, entre nuvens de algodão e estrelas de purpurina. Ele riu no telefone:

— Você só me liga quando está em crise? A crise é tua ou do país?

— Nelson, eu sou parte dos detritos da nação...

— Não faz frase, rapaz, olha a pose... Esta crise é maravilhosa, os brasileiros deviam se agachar no meio-fio e beber dessa sagrada lama. Ali está a salvação. O Brasil está assumindo a própria miséria, a própria lepra. Finalmente, os marxistas de galinheiro estão mostrando a cara, rapaz. Eles fazem parte da legião de cretinos fundamentais que infestam o país. Os cretinos fundamentais se escondem sob a capa da revolução, dos títulos acadêmicos, das togas de juízes, da faixa de presidente. Antigamente o cretino se escondia pelos cantos, envergonhado da própria sombra; hoje, se você subir num caixotinho de querosene Jacaré e falar “meu povo”, os cretinos formam uma multidão de Fla x Flu. Você pegue o Prestes, por exemplo; ele só fez errar na vida. Tudo que ele quis deu zebra, de 35 até o fim... No entanto, quem falar mal do Prestes provoca arrancos de cachorro atropelado no ouvinte: “Não admito, ouviu?!” Esta crise é boa porque revela a burrice da velha esquerda. Durante 25 anos organizaram um partido operário e chamaram os intelectuais que fizeram um carnaval danado, transformando o Lula num Padim Ciço. Mas, quando chegaram ao poder, debaixo de papel picado, resolveram se suicidar como as virgens do meu tempo: ateando fogo às vestes. Daí, a verdade inapelável e brutal: o comunista odeia o poder! Eles erram sempre, de propósito, para esconder a incompetência sob o pretexto do fracasso. Para eles, o fracasso enobrece e oculta a burrice. E em seu martírio, eles berram, orgulhosos como cristãos comidos pelos leões em filme de Cecil B. de Mille: “Fracassei em nome do povo!”

— Mas... Nelson... o proletariado sob o capitalismo...

— Pára com isso, rapaz; o homem é capitalista... Existe mercado desde o tempo dos macacos disputando minhocas no buraco. Só os cegos acreditam na utopia e só os profetas enxergam o óbvio. O óbvio é um Pão de Açúcar que ninguém vê. E o óbvio é que os petistas queriam fazer a revolução debaixo das pernas do Lula. Mas foram mexer com a única coisa que não podiam: com o canalha brasileiro. O canalha é um patrimônio da nacionalidade. Desde Tomé de Souza que roubam sem parar. Pois os canalhas estavam quietos, metendo as mãos nas cumbucas do Estado, quando de repente apareceu-lhes o Zé Dirceu, achando que ia passar-lhes o conto-do-vigário. Os canalhas olharam maravilhados a burrice lívida do Dirceu e sacaram na hora: “É tudo mané!..” Dirceu lhes esfregava milhões de reais na cara e eles piscavam cinicamente uns para os outros e diziam, contritos: “Perfeitamente, camarada Dirceu.”

— Você acha o quê do Dirceu?

— Ele me fascina. Eu o conheci em 67, por aí... Ele vivia atracado em postes, como vira-latas... Explico: o Dirceu não podia ver um poste que ele trepava em cima e escrachava o capitalismo. Você sabe que os comunas tratam o capitalismo como uma pessoa: “Hoje o capitalismo acordou de mau humor, o capitalismo tem de morrer!!!” Bem, como eu ia dizendo, o Dirceu vivia trepado em postes, falando da utopia, que ninguém sabia quem era. Alguns sujeitos rosnavam: “Quem é essa tal de utopia? É mulher dele?” Pois um dia o nosso Dirceu encontrou o Lula. Foi uma festa. O Lula era o robô perfeito para o Dirceu: operário, foice e martelo, barba, ignorante e sem dedo — tinha tudo para se tornar um símbolo de santidade, um messias da USP, onde as professoras se estapearam para pegar um autógrafo do proletário. Dirceu doutrinou o Lula, criaram o PT, até que Lula chegou ao poder. Aí apareceu o Dirceu “Ricardo III” — o verdadeiro — que esfregou as mãos: “Oba! Deixa comigo!!!” E jogou o Lula para córner. O Lula achou ótimo porque estava em fremente lua-de-mel consigo mesmo, segredando para D. Marisa: “Ei, mãezinha, quem diria, nós aqui, hein...?” E nem ligava: “Deixa que o Dirceu resolve!” E ia beijar rainhas e reis, lambido pelos grã-finos internacionais.

Foi aí que surgiu o canalha, ou melhor, o ex-canalha, porque o Jefferson entrou em cena como um Falstaff ao contrário, denunciando o comandante da revolução corrupta. O Jefferson e o Dirceu são a essência do teatro: protagonista e antagonista. Jefferson saiu da mentira para a verdade e o Dirceu da verdade para a mentira. A maior peça do teatro brasileiro foi o duelo dos dois na Câmara. O país parou como no Brasil x Uruguai.

Um é o espelho invertido do outro. Os dois juntos levantaram a cortina do erro brasileiro, um traçando o diagrama do sistema do atraso e o leninista fazendo a caricatura desse ridículo sonho revolucionário do qual o Brasil tem de acordar, para fazer a verdadeira revolução americana de que Sérgio Buarque falava. O Jefferson, que tinha passado a vida escondido na própria gordura, esgueirando-se por estatais e fundos de pensão, descobriu a deliciosa euforia da verdade. Ninguém é mais feliz que o Jefferson, tendo orgasmos de denúncias didáticas para o país, abrindo o alçapão de ratos. E ninguém é mais feliz também que Dirceu, finalmente livre de sua revolução fracassada, finalmente no ansiado martírio, o único sossego dos paranóicos.

O óbvio ululante é que eles não devem ser tratados como canalhas. Os brasileiros deviam ajoelhar-se e beijar suas mãos, pois Jefferson fez o maior tratado de sociologia da vida nacional e Dirceu fez uma revolução ao avesso — queria um socialismo stalinista e acabou fortalecendo a democracia.

Um dia terão uma estátua em bronze — os dois sob os braços ternos de uma grande deusa nua: a República celebrando seus heróis. Rapaz, isso é o óbvio: Dirceu e Jefferson salvaram o Brasil!” E desligou.

Puta que pariu, Severino!

O Ultimo vôo do Pequeno Príncipe

Bem cedo numa manhã de setembro de chuva torrecial, Jean-Claude Bianco, comandante do pesqueiro L’Horizon, lançou sua rede nas águas agitadas do Mediterrâneo ao largo da costa francesa, perto de Marselha. Avançando devagar, começou a descrever um curso amplo amplo e elíptico para o leste e depois em direção à Ilha de Riou. Apos três horas, percorrera o trajeto duas vezes e a imensa rede sulcara o fundo do mar a cerca de 100 metros de profundidade, capturando peixes e tudo o mais em seu caminho.

Içando o arrastão a bordo, a tripulação começou a separar a pesca. O imediato Habib Benamor estava prestes a descatar um bloco cinza-escuro de sedimento calcificado quando distinguiu um diminuto lampejo prateado.

Intrigado, pegou um martelo e esmagou a crosta, libertando o objeto em seu interior – uma pulseira de identificação cuja corrente achava-se quase intacta. Estava marcada e escurecida, mas o metal ainda cintilava numa das estremidades.

Benamor mostou seu achado ao capitão. Bianco esfregou a pulseira com esponja e detergente. As letras começaram a aparecer, todas maiúsculas : ANTOINE DE SAINT-EXUPERY e, em seguida, (CONSUELO).

Com um sobresalto de reconhecimento, Bianco compreendeu que o arrastão L’Horizon apanhara a chave do maior enigma literário do século 20: o desaparecimento, meio século antes, de Antoine de Saint Exupéry, um dos mais queridos escritores da França, autor do imortal livro infantil O Pequeno Príncipe.

‘‘Tiramos a sorte Grande’’, exultou Bianco naquele dia de 1998. Mas não era tão simples assim.

O aristocrático Saint-Exupéry nasceu com o século. Tinha 12 anos quando descobriu os aviões na pequena pista de pouso rural de Ambérieu, perto de Lyon. O garoto atormentou um piloto para que o levasse lá em cima numa daquelas máquinas frágeis e barulhentas, e foi fulminado pela alegria de voar.

Cadete da aviação militar aos 21 anos, qualificou-se como piloto e transferiu-se, aos 26 anos, para a Aeropostal, o serviço de correio aéreo para Casablanca e Drakar, no que então eram as colônias africanas de Marrocos e Senegal, pertecentes à França. Um ano depois, foi designado chefe da estação e ponto de abastecimento de cabo Juby, no deserto sul de Marrocos.

Administrando a estação, fornecendo informações sobre rotas de correio e examinando o deserto a fim de resgatar pilotos que haviam caído, ele mergulhou, como Charles Lindbergh nos Estados Unidos, na mais excitante aventura da época.

Em seguida, foi designado para Buenos Aires, na Argentina, com o propósito de inaugurar uma nova rota para a Patagônia.

Segundo o público admirador, que lia relatórios jornalísticos das corajosas proezas por trás da entrega de suas cartas, as rotas de correio dos anos 1920 e 1930 eram como os modernos vôos espaciais, e os pilotos de casaco de couro eram heróis pioneiros.
Inspirado por suas experiências na Aeropostal, Saint-Exupéry lançou seus primeiros romances, Correio do Sul e Vôo Noturno, que o tornaram famoso.

Quando a 2a. Guerra Mundial eclodiu, desastres e hospitalizações haviam deixado em Saint-Exupéry seqüelas de ferimentos e dores. Entretanto, aos 39 anos, velho demais para o combate aéreo, insistiu em juntar-se ao esforço de guerra, voando em pequenas missões fotográficas no esquadrão 2/33 de reconhecimento da Força Aérea Francesa. Com a derrota da França, foi para os Estados Unidos, onde começou a escrever e pintar as ilustrações em aquarela para O Pequeno Príncipe.

A clássica fantasia tornou-se um dos maiores sucessos da história literária, com mais de 25 milhões de exemplares vendidos em aproximadamente 100 idiomas. O livro conta a história de um menino, único habitante do asteróide B 612, que se paixona por uma linda rosa, briga com ela e parte para explorar a vida em outros planetas. O garoto recebe a sabedoria da vida de uma raposa: ‘‘Só se vê bem com o coração.’’

Fantasioso e encantador em certo nível, o livro é claramente autobiográfico em outro. A rosa é sua mulher, Consuelo, com quem tinha um relacionamento tempestuoso, e o príncipe incansavelmente questionador é ele mesmo, refletindo sobre a vida enquanto voa entre as estrelas.

Em 1943, Saint-Exupéry voltou ao seu antigo esquadrão 2/33 de reconhecimento da Força Aérea Francesa Livre na África do Norte e depois se deslocou com ele para uma nova base na Córsega.

Equipado e apoiado pelos Estados Unidos, esse era um esquadrão de elite formado por jovens ases da aviação. Aos 44 anos, Saint-Exupéry estava velho, grande e pesado demais para o veloz, ultramoderno e fisicamente exigente Lockheed P-38, um bimotor com talentos de puro-sangue chamado ‘‘Lightning’’, que o esquadrão pilotava. Entretanto, utilizou a fama e os contatos políticos para garantir uma desgnação para pelo menos cinco missões.

Lockheed P-38

Na segunda, cometeu um erro durante a aterrissagem, provocando graves danos ao avião, e foi afastado. Foram tempo difíceis para Saint-Exupéry. O relacionamento com a mulher era tenso, tinha problemas financeiros e sentia-se deprimido e humilhado por causa do afastamento. Partidários do General Charles de Gaulle, o lider da guerra francês, repreenderam-no asperamente por ter ido aos Estados Unidos em vez de se reunir ao governo no exílio, em Londres.

O aviador veterano apresentava indícios de pensamentos suicidas. ‘‘ Sou completamente indiferente à idéia de morte’’, escreveu a um amigo, e contou a seus companheiros pilotos que adivinhos haviam previsto que sua vida terminaria no mar. Aproveitando-se de sua infuência, forçou um caminho de volta à lista de ativos. Na segunda-feira, 31 de julho de 1944, decolou do campo de pouso de Poretta, na Córsega, para uma missão de mapeamento sobre a França oriental, próximo à fronteira da Suíça, em um P-38 F-5B da série J. Nunca mais voltou.

O que acontecera com ele ? Diferentes teorias circulavam nos 60 anos seguintes, mas Saint-Exupéry, a personalidade literária, aos poucos foi se trnasformando, para os franceses, no Saint-Exupéry herói de guerra: o corajoso e solitário piloto, lutando para libertar seu país.

Em 1993, o banco central francês lançou uma nota de 50 francos que exibia um retrato do piloto, ladeado de sua ilustração de o Pequeno Príncipe. Os franceses, e sobretudo a família do aviador, gostavam de pensar em seu desaparecimento nos termos sonhadores expressos pelo Pequeno Príncipe, quase no fim do livro :

‘‘Tu, porém, terás estrelas como ninguém as teve… Quando olhares o céu de noite, eu estarei rindo ; então será, para ti, como se todas estrelas rissem!’’

Na manhã seguinte à descoberta da pulseira, Bianco a levou para Henri-Germain Delauze, fundador e presidente da Comex, empresa de mergulho industrial de Marselha. Delauze, engenheiro e explorador de náufragos, vislumbrou a mais prestigiosa de todas descobertas: o avião de Saint-Exupéry.

Mantendo a pulseira em segurança, levou seu barco de pesquisa, o Minibex, para a área em que o L’Horizon pescara e começou a inspecioná-la com o equipamento mais sotisficado possível: um sonar de pesquisa lateral, um robô teleguiado e um minissubimarino com capacidade para duas pessoas.

A busca prosseguiu por duas semanas, por mais de 100km2 no leito do mar, mas não havia vestígios do avião.

As notícias logo se espalharam e, no fim de outubro, Hervé Vaudoit, do jornal marselhês La Provence, publicou um artigo de primeira página anunciando a descoberta da pulseira de Saint-Exupéry.

Mas onde estava o avião? Entra em cena Luc Vanrell. Mergulhador profissional, dono de uma loja e de uma escola de mergulho em Marselha, lembrou-se de que, em 1982, havia fotografado uma estranha área de escombros metálicos perto de Riou. Enviara fotos para especialistas na França e na Europa, mas ninguém conseguiu identificar os destroços. Agora Vanrell se dava conta de que podia ter descoberto algo importante.

Voltou ao local e tirou mais fotografias, que dessa vez enviou, por mail a grupos veteranos da Força Aérea dos Estados Unidos. Eles encontraram em contato com Jack Curtis, um velho piloto de P-38 da 367a Ala de Combate.

Por dois anos, munido de encorajamento de Curtis e de uma pilha de documentos técnicos sobre o P-38, Vanrell mergulhou repetidas vezes em ‘‘sua’’ área de destroços, fotografando os restou enferrujados e cobertos de costras. Tornou-se um perito em identificação submarina: o eixo de controle de um aileron aqui, uma válvula de turbocompressor depositada ali, o suporte da estrutura de um trem de pouso mais adiante.

Era um trabalho lento, frio, meticuloso, e a colheita era magra, pois o avião havia claramente explodido com o impacto, espalhando seus fragmentos por uma área imensa. (Vanrell sabia que não podia haver restos humanos, pois o mar cuidara deles muito tempo atrás).

Em maio de 2000, ele declarou oficialmente sua descoberta ao DRASSM, o departamento de arqueologia submarina do ministério da Cultura, sediado em Marselha. No dia seguinte, encontrou-se com Bianco e Dalauze para contar seu segredo : todas as peças que encontrara correspondiam a um P-38 F-5B da série J. Descobriu-se que quatro deles haviam afundado e três já haviam sido identificados. Aquele, portanto, tinha de ser o avião de Saint-Exupéry.

A única forma de validar essa hipótese era conduzir as peças à superfície e procurar os números de série. No entanto, era ilegal retirar artefatos do fundo do mar. Alarmada com a pilhagem de destroços antigos por mergulhadores amadores, a França aprovara leis draconianas protegendo a herança arqueológica do país. Os membros sobreviventes da família do aviador também protestaram. ‘‘Eles sempre foram contrários à operação’’, explicou Vaudoit, o jornalista do La Provence. ‘‘Saint-Exupéry, desaparecendo como o Pequeno Príncipe, era sagrado para eles.’’

Mais três anos se passariam antes que o DRASSM concordasse com uma missão de identificação formal. Em setembro de 2003, Delauze levou novamente o Minibex para perto da Ilha de Riou e, sob a orientação de Vanrell lá embaixo, trouxe o trem de pouso, um turbocompressor, uma peça de alumínio da fuselagem e alguns componentes hidráulicos e elétricos. Depois de várias visitas, resgataram cerca de 10% da aeronave.

Philippe Castellano, historiador amador, mergulhador e presidente do Aéro-Re.L.I.C., clube especializado na localização e identificação de restos de aviões abatidos na 2a. Guerra, foi chamado para conduzir a identificação. Ele sabia exatamente o que procurar: um conjunto de número específico.

‘‘A Lockheed identificava sua aeronaves com quatros números de fabricação específicos para cada avião, gravados em locais diferentes da estrutura, que provavelmente sobreviveriam a uma queda’’, explicou. ‘‘O que eu estava procurando era o número 2734. Era esse o cálice sagrado.’’

Inclinando-se sobre os pedaços de metal espalhados no chão de concreto de um hangar emprestado, Castellano e sua equipe pacientemente verificaram cada fragmento, como joalheiros inspecionando diamantes.

Ao chegarem à armação de um turbocompressor do motor, o coração de Castellano deu um salto: lá estava ele, na base do lado esquerdo, gravado a mão no aço com um martelo e um cinzel : 2734.

Ele ergueu o punho : ‘‘é isto aí, rapazes’’, gritou. ‘‘Encontramos !’’

A verdade estava ali : Saint-Exupéry morrera no Mediterrâneo, a cerca de um quilômetro de Riou.

Mas como aquilo acontecera, e por quê ? Talvez ele tivesse sido abatido por um combatente alemão, um motor houvesse parado ou seu sistema de oxigênio tivesse falhado, levando-o a perder a consciência.

Os registros da Luftwaffe não mostram nenhum P-38 abatido derrubado em 31 de julho de 1944 e não havia orifícios de bala nas peças recuperadas. Quanto à hipótese de falta de oxigênio, havia ar suficiente para respirar quando Saint-Exupéry desceu a atitudes mais baixas.

A verdade parece ser menos heróica. O impacto nas peças recolhidas pelo Minibex – aço inoxidável retorcido e sanfonado – e a posição das válvulas do turbocompressor indicam que o último momento de Saint-Exupéry em vôo foi um mergulho quase vertical, com os motores em velocidade máxima. Isso indicaria que Saint-Exupéry sabia exatmente o que estava fazendo.

Em 31 de julho de 2004, 60 anos apos o dia do desaparecimento de Saint-Exupéry, o pesqueiro Khalifa, comandado por Habib Benamor, ancorou a um quilômetro da Ilha de Riou.
Vanrell estava lá, com Danlauze, Castellano, Bianco, Vaudoit e muitos outros que participaram da busca de mais de seis anos. Um padre proferiu algumas palavras e foram lidos trechos dos livros de Saint-Exupéry, incluindo O Pequeno Príncipe. Depois um buquê foi lançado ao mar.

Os fãs de Saint-Exupéry pelo mundo, que continuam a sonhar com a mágica que ele criou com sua pena, podem preferir a predição do Pequeno Príncipe : ‘‘Tu sofrerás. Eu parecerei morto e isso não sera verdade…’’

Por Rudolph Chelminski

Luis Fernando Verissimo - A morte da Velhinha de Taubaté

Prosseguem as investigações sobre a morte da Velhinha de Taubaté, que ficou conhecida nacionalmente por ser a última pessoa no Brasil que ainda acreditava no governo. O inquérito está sendo conduzido pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, dada a repercussão do caso. Um promotor sai de cinco em cinco minutos da sala em que está sendo interrogado o gato da Velhinha, o Zé, para informar à imprensa o que se passa lá dentro, embora o gato tenha, até agora, dito muito pouco. “Miau”, basicamente.

Houve um princípio de tumulto entre repórteres quando uma equipe da televisão, gravando clandestinamente no interior da casa da Velhinha, localizou um pedaço de papel com números e o que parecia ser a palavra “off-shore” em letra tremida, o que indicaria que a Velhinha tinha uma conta no exterior, onde receberia para acreditar no governo. Depois se revelou que eram números para jogar na Sena, que a Velhinha sempre acreditava que ia ganhar, e que a palavra escrita era “oxalá”. Mas alguém ficou com o papel e é possível que a notícia “Velhinha tinha conta no exterior” apareça em alguma manchete nos próximos dias para atrair a atenção, mesmo que o texto diga outra coisa. Sabe como é a imprensa.

Todas as CPIs em andamento no Congresso Nacional disputam a prioridade em convocar o Zé para depor em Brasília, o que tem acirrado o conflito entre elas, que muitos temem possa acabar numa guerra aberta com congressista brigando com congressista pelos corredores e todos se juntando para pegar o ACM Neto.

Só o gato poderia contar o que realmente aconteceu, na improvável hipótese de, ao contrário do que fizeram tantos outros nas CPIs, começar a falar. Mas pode-se deduzir o que levou a Velhinha a morrer — ou se matar com veneno no chá. Ela nunca se recuperou totalmente do choque da notícia da compra de votos para reeleger o Fernando Henrique, seu ídolo na ocasião, apesar de depois acreditar em todos os desmentidos. Debilitada, sofreu outro baque com as denúncias contra o Palocci, seu ídolo atual, e outro baque quando soube que nem no Ministério Público se podia confiar. Foi demais para a Velhinha.

O curioso é que as alegres multidões que iam até a sua casa na esperança de ver o fenômeno, um brasileiro que ainda acreditava, estão sendo substituídas por tristes romeiros que visitam o santuário improvisado na frente da sua casa, em Taubaté, na esperança de recuperar a fé. A Velhinha pode muito bem se transformar em milagreira depois de morta. As pessoas querem acreditar, pelo menos, em quem acreditou um dia.