A trégua de Natal de 1914

Soldados britânicos e alemães confraternizam na Terra de Ninguém


A incrível trégua não oficial em 25 de Dezembro de 1914.
Não há a menor dúvida de que realmente aconteceu – a trégua de Natal não oficial de 1914 – mas até hoje, muitas pessoas não estão totalmente a par dos detalhes e extensão deste notável hiato na guerra, que ocorreu durante aquelas poucas horas do quinto mês do primeiro ano de conflito.

Para a maioria das pessoas, a trégua foi observada pelos britânicos e alemães na parte mais ao sul do saliente de Ypres, na Bélgica. Entretanto, ela ocorreu em vários outros pontos do Fronte Oeste e por outros combatentes, notadamente os franceses e belgas, embora o fato que os alemães estavam situados em território francês ou belga inibiu qualquer grande demostração de boa vontade para com os openentes alemães.

Registro histórico das tréguas em tempo de guerra

Tréguas em períodos de guerra não eram tão incomuns. Exemplos de interrupções temporárias em conflitos datam de séculos atrás e incluem as guerras Peninsular e da Criméia (entre os ingleses e franceses na primeira e ingleses e russos na segunda). Histórias similares são contadas a respeido de refeições trocadas entre os lados opostos durante a Guerra Civil Americana e, em 1900, na Guerra dos Boers, na África do Sul.

De fato, em várias arenas da Primeira Guerra Mundial a tradição continuou além do Natal. O extraordinário líder da guerra de guerrilha alemão na África Leste, Coronel Paul von Lettow-Vorbeck, era famoso por suas cavalheirescas – segundo alguns civilizadas – maneiras em que ele conduzia a guerra. Por exemplo, após humilhar as forças indianas lideradas pelos britânicos na batalha de Tanga, no início de Novembro de 1914, líderes de ambos os ladosse reuniram sob uma bandeira branca para trocar opiniões acerca da ação e para compartilhar uma garrafa de brandy.

Entretanto, este estilo de cortesia foi considerado extinto com a aparição da relativamente nova forma de guerra mecanizada que caracterizou a Primeira Guerra Mundial, certamente como era combatida no Fronte Oeste. Apesar disso, não eram incomuns breves cessar-fogo serem taticamente aceitos e observados por uma ora ou mais, como durante o café-da-manhã em setores mais calmos onde apenas poucas jardas separavam as tropas aliadas das germânicas; um caso de “viva e deixe viver”.

Início com árvores de Natal e cantigas

Embora existam muitas histórias individuais acerca de como o Natal não oficial foi iniciado em vários setores, para a maior parte ele foi iniciado pelas tropas alemãs estacionadas defronte às forças britânicas onde uma distância relativamente curta separava as trincheiras ao longo da Terra de Ninguém.

Muitos soldados alemães tinham, como era seu costume na véspera de Natal, começado a montar árvores de Natal, adornadas com velas acesas – com a exceção que, desta vez, foram posicionadas ao longo das trincheiras do Fronte Oeste.

Inicialmente surpresos e, então, desconfiados, os observadores britânicos reportaram a existência delas para os oficiais superiores. A ordem recebida foi que eles não deveriam atirar mas, em vez disso, observar cuidadosamente as ações dos alemães.

A seguir foram ouvidos cânticos de Natal, cantados em alemão. Os ingleses responderam, em alguns lugares, com seus próprios cânticos. Aqueles soldados alemães que falavam inglês então gritaram votos de Feliz Natal para “Tommy” (o nome popular dos alemães para o soldado britânico); saudações similares foram retribuíadas da mesma maneira para "Fritz".

Em algumas áreas, soldados alemães convidaram “Tommy” para avançar pela “Terra de Ninguém” e visitar os mesmos oponentes alemães que eles estavam tão absortos em matar poucas horas antes. Edward Hulse, um tenente dos Scots Guards, com 25 anos de idade, escreveu no diário de guerra do seu batalhão: "Nós iniciamos conversações com os alemães, que estavam ansiosos para conseguir um armistício durante o Natal. Um batedor chamado F. Murker foi ao encontro de uma patrulha alemã e recebeu uma garrafa de uísque e alguns cigarros e uma mensagem foi enviada por ele, dizendo que se nós não atirássemos neles, eles não atirariam em nós”. Consequentemente, as armas daquele setor ficaram silenciosas aquela noite.

A notícia se espalha

Estórias começaram a se espalhar sobre visitas trocadas entre as forças aliadas (incluindo algumas francesas e belgas) e os inimigos alemães. Tais visitas não estavam restritas aos soldados rasos somente: em algumas ocasiões, o contato inicial foi feito entre oficiais, que definiram em conjunto os termos da trégua, acrescentando somente o quanto seus homens poderiam avançar em direção às linhas inimigas.

Estes termos normalmente permitiam o enterro das tropas de cada lado que jaziam ao longo da “Terra de Ninguém”, alguns mortos há apenas uns dias, enquanto outros haviam esperado meses pela dignidade de um funeral – todos, porém, tiveram que ser deixados onde haviam caído, pois metralhadoras cobriam o local onde eles jaziam na desolação entre as trincheiras opostas.

Naturalmente, homens das equipes encarregadas dos funerais entraram em contato com os membros das equipes similares do inimigo quando, então, conversas foram entabuladas e cigarros trocados. Cartas foram encaminhadas para serem entregues para famílias ou amigos vivendo em cidades ou vilarejos beligerantes.

O mais notável de tudo foi, talvez, a história da partida de futebol entre o regimento inglês de Bedfordshire e as tropas alemãs (alegadamente vencido por 3-2 pelos últimos). O jogo foi interrompido quando a bola foi murchada após atingir um emaranhado de arame farpado. Em muitos setores a trégua durou até a meia-noite de Natal; enquanto em outros durou até o primeiro dia do ano seguinte.

Reação oficial e do público

As reações à trégua de Natal vindas de várias fontes vieram em várias formas. Os Governos aliados e o alto-comando militar reagiram com indignação (principalmente entre os franceses). O Comandante-em-Chefe britânico, Sir John French, possivelmente tinha previsto a suspensão das hostilidades no Natal quando emitiu uma ordem antecipada alertando suas forças para um provável aumento da atividade alemã durante o Natal: ele, portanto, instruiu seus homens para redobrar o estado de alerta durante esta época.

Após a trágua ele escreveu severamente: "Eu emiti ordens imediatas para prevenir qualquer recorrência deste tipo de conduta e convoquei os comandantes locais para prestarem contas, o que resultou em punições severas". A igreja Católica, através do Papa Benedito XV, tinha solicitado anteriormente uma interrupção temporária das hostilidades para a celebração do Natal. Embora o Governo alemão tenha indicado sua concordância, os aliados rapidamente discordaram: a guerra tinha que continuar, mesmo durante o Natal.

Quase imediatamente à trégua, as mensagens enviadas chegaram para os familiares e amigos daqueles servindo no fronte através do método usual: cartas para casa. Estas cartas foram rapidamente utilizadas por jornais locais e nacionais (incluindo alguns na Alemanha) e impressas regularmente.

O autor de Sherlock Holmes, Sir Arthur Conan Doyle, comentou em sua história da guerra o “episódio humano em meio às atrocidades que tem manchado a memória da guerra”.

Sir Horace Smith-Dorrien, o Comandante do II Corpo britânico na época, reagiu com uma simples instrução: "O Comandente do Corpo, portanto, ordena aos Comandentes de Divisão para incutirem em todos os seus comandantes subordinados a absoluta necessidade de encorajarem o espírito ofensivo das tropas, enquanto estiverem na defensiva, por todos os meios à sua disposição. Relações amistosas com o inimigo, armistícios não oficiais (i.e. ‘nós não atiramos se vocês não atirarem’, etc.) e a troca de tabaco e outros confortos, não importa o quão tentadores e ocasionalmente agradáveis possam ser, estão absolutamente proibidos".

A visão do soldado no fronte

Nas cartas para casa, os soldados na linha de frente foram praticamente unaânimes em expressar seu espanto com os eventos do Natal de 1914.

Um alemão escreveu: "aquele foi um dia de paz na guerra; é uma pena que não tenha sido a paz definitiva".

O Cabo John Ferguson contou como a trégua foi conduzida no seu setor: "Nós apertamos as mãos, desejando Feliz Natal e logo estávamos conversando como se nos conhecêsse-mos há vários anos. Nós estávamos em frente às suas cercas de arame e rodeados de alemães – Fritz e eu no centro, conversando e ele, ocasionalmente traduzindo para seus amigos o que eu estava dizendo. Nós permanecemos dentro do círculo como oradores de rua. Logo, a maioria da nossa companhia (Companhia ‘A’), ouvindo que eu e alguns outros havíamos ido, nos seguiu... Que visão – pequenos grupos de alemães e ingleses se extendendo por quase toda a extensão de nossa frente! Tarde da noite nós podíamos ouvir risadas e ver fósforos acesos, um alemão acendendo um cigarro para um escocês e vice-versa, trocando cigarros e souvenires. Quando eles não podiam falar a língua, eles tentavam se fazer entender através de gestos e todos pareciam se entender muito bem. Nós estávamos rindo e conversando com homens que só umas poucas horas antes estávamos tentando matar!"

Bruce Bairnsfather, o autor dos famosos cartuns ‘Old Bill’, resumiu os sentimentos de muitas das tropas britânicas quando ele escreveu: "Todos estavam curiosos: ali estavam aqueles malditos comedores-de-salsicha, que tinham começado aquela infernal guerra européia e, ao fazer isso, nos enfiaram no mesmo lamaçal junto com eles... Não havia um átomo de ódio em qualquer dos lados aquele dia e ainda, no nosso lado, nem por um momento havia a vontade de guerrear e a vontade de deixá-los relaxados".

Uma vez e somente uma

No entanto, a reação foi de tal monta que precauções especiais foram tomadas durante os Natais de 1915, 1916 e 1917, usando mesmo o expediente de realmente aumentar os bombardeios de artilharia. Os eventos do final de Dezembro de 1914 nunca mais foram repetidos.

Investigações foram conduzidas para determinar se a trégua não oficial foi de alguma maneira organizada de antemão; o resultado da apuração foi negativo. Aquilo foi um evento genuinamente espontâneo, que ocorreu em alguns setores mas não em outros.

Embora a história dos conflitos inclua numerosos exemplos de gestos generosos entre inimigos, a trégua de Natal no Fronte Oeste foi talvez o mais espetacular e, certamente, o mais renomado de seu tipo. Boa vontade para todos os homens – por um período.

Mesmo naquele aparentemente pacífico dia de Natal, a guerra não foi completamente esquecida; muitos dos soldados que apertaram as mãos de Tommy ou Fritz em 25 de Dezembro de 1914, trataram de observar a estrutura das defesas do inimigo, de modo que se pudese tirar vantagem de qualquer falha nas defesas no dia seguinte...


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O Pensador, de Rodin, em sua eterna crise existencial .

O gênio da porta ao lado


Do jornal 'The Mail' de domingo - 03.12.2006
por David Sore

Sua gritaria podia começar a qualquer hora da noite ou do dia, mas frequentemente parecia começar justo na hora de eu ir pra cama. Havia batidas e barulho de coisas se quebrando vindos da porta ao lado, enquanto a mobília era destruída, além de um latido incessante, mais parecido com um animal do que com um humano.

Isto podia durar duas horas e, como uma criança pequena, isso me apavorava. Geralmente eram apenas berros incoerentes e raivosos, mas bem de vez em quando dava pra se distinguir palavras. Elas eram sempre as mesmas: 'Roger Waters #*&@#$! Eu vou te matar, seu *&%$#@.' Não era muito divertido ter Syd Barrett como vizinho.

É claro que eu não sabia quem era ele naquela época. Somente mais tarde que eu percebi que ele era uma lenda do rock, um dos membros fundadores do Pink Floyd, que tinha arrebanhado Paul McCartney, David Bowie e Pete Townshend entre seus fãs. Recentemente, foi revelado que Syd, que morreu em julho, deixou 1,2 milhões de libras em seu testamento.

Ele era o gênio compositor por trás da maioria do material do início do Floyd, incluindo os singles de sucesso See Emily Play e Arnold Layne, mas seu crescente comportamento bizarro o levou a deixar a banda em 1968, logo depois do lançamento do seu primeiro disco.

Pink Floyd - com Roger Waters, Richard Wright, Nick Mason e o substituto de Syd, David Gilmour - veio a se tornar uma das bandas de rock mais bem sucedidas de todos os tempos. A carreira de Syd se atrofiou depois de alguns discos solo. Então ele se mudou para a porta ao lado da minha.

Eu morei com minha família na Praça de St. Margaret, no.7, em Cambridge. Era um beco tranquilo com casas semi-conjugadas no estilo dos anos 30. Winifred, a mãe de Syd, morava na porta ao lado, no número 6, e em 1981, quando eu tinha seis anos de idade, seu filho retornou de Londres pra morar com ela.

A primeira vez que o vi, eu estava brincando com minha bicicleta em nossa garagem. Ele saiu de sua casa com uma tesoura de cortar grama e uma serra, um homem impossível de se descrever com seus 30-35 anos com o cabelo ralo. Sem falar nada, ele começou a cortar árvores e galhos no seu jardim. O jardim já tinha sido lindo - os moradores anteriores trabalhavam no Jardim Botânico da Universidade de Cambridge - mas era como se ele fosse destruído por um tornado depois que Syd terminou. Ele cortou todos os troncos de árvore, carregou-os até seu quintal e os queimou numa enorme fogueira. Meus pais ficaram muito indignados, mas eles não podiam fazer nada. Nós não tínhamos idéia que isto era o começo de uma rotina que se repetiria de novo e de novo. Sempre que os arbustos cresciam de novo, Syd os arrancava e os queimava. Ele também destruiu e queimou seu 'portfolio' - pinturas psicodélicas, que vagamente lembravam Jackson Pollock. As fogueiras eram enormes, com chamas de 2 metros de altura, mais ou menos, o que causava uma grossa névoa de fumaça branca por sobre toda a rua.

A mãe de Syd, que era amiga de meus pais, estava sempre se desculpando, mas ela não podia fazer nada para detê-lo. E nós logo aprendemos que não adiantaria protestar com o próprio Syd. Qualquer tentativa de impedi-lo de continuar sua rotina seria respondida, no máximo, com um olhar vazio. Às vezes ele podia soltar o verbo e fazer ameaças. Quando Syd estava em uma de suas piras de sair queimando tudo, tudo o que a gente podia fazer era desistir e entrar em casa, fechando todas as portas e janelas. Syd realmente não se preocupava.

Mas as fogueiras eram a menor de nossas preocupações. A paz era frequentemente abalada pelo som de copos se quebrando. Quando os demônios internos que atormentavam Syd se superavam, ele podia arremessar coisas através de suas janelas. Isso aconteceu pelo menos umas cem vezes. Seu gramado estava constantemente desarrumado por conta dos vidros quebrados, canecas, panelas e enfeites. Às vezes a "quebração" de janelas começava no meio da noite e eu deitava na cama com medo que ele começasse a atacar nossa casa. Eu estava convencido que um dia ele acabasse com suas próprias janelas e viesse quebrar as nossas. De vez em quando, uma janela era consertada, e então quebrada novamente no dia seguinte. Syd sozinho mantinha os lucros das vidraçarias da região.

Mas os acessos de gritaria eram de longe o aspecto que mais incomodava no seu comportamento. Ouvir um homem adulto se lamentando e soltando gritos estridentes durante horas era pavoroso para mim e para minhas duas irmãs. Nós não entendíamos de doenças mentais. Até onde a gente sabia, nós éramos vizinhos de um lunático inconsequente e possivelmente perigoso.
Nossos maiores medos se confirmaram na noite em que Syd foi levado numa camisa-de-força.
Nós já tínhamos ligado pra polícia anteriormente algumas vezes. Eles chegavam e trocavam umas palavras com a mãe de Syd e iam embora sem tomar mais nenhuma atitude. Mas nesta ocasião seu surto tinha sido particularmente violento e nós descobrimos mais tarde que ele tinha
atacado sua mãe. Ela chamou a polícia. Eu me lembro de ficar espiando na janela e ver Syd sendo levado embora à força. Sua mãe estava muito desapontada e estava implorando para ele se acalmar mas ele cuspia uma pá de palavrões. Eu gostaria que ele nunca mais tivesse voltado. Mas ele voltou alguns dias depois e sua mãe se mudou para a casa da filha, Rosemary. Ela não podia mais lidar com Syd.

Depois disso, Rosemary o procurou. Ela o levava fazer compras em Sainsbury toda semana. A loja ficava a 10 minutos de distância. Ela o pegava, dirigia com ele até lá e andava pelos corredores, como se ele fosse uma criança, depois o levava de volta. Ele ficava sentado no carro até Rosemary abrir a porta pra ele e o levar pra dentro de casa. Ele parecia que realmente não sabia onde ele estava ou o que estava acontecendo. Com sua mãe ausente, seu comportamento continuava como antes. Nossa família fazia o papel de um "sistema de prevenção", ligando para sua irmã quando ele ficava fora de controle. Ela chegava e acalmava a situação.

Foi dito que Syd tinha pouco interesse no Pink Floyd depois de deixar a banda, ainda que as fogueiras e janelas quebradas fossem mais frequentes em 1986, quando o Floyd estava na mídia por causa de uma disputa legal entre Waters e os outros membros. Podia ser coincidência, mas Syd parecia culpar Waters por qualquer coisa - foi o único nome que ele citava nos seus gritos e ameaças. Eu costumava me preocupar em como nós nos protegeríamos caso ele se tornasse destrutivo e nos atacasse. Syd me lembrava Jack Nicholson em O Iluminado.

Em todos estes anos, ele nunca me disse mais que algumas palavras de uma vez. Se a gente passava na rua, ele às vezes conseguia soltar um murmurado 'oi', mas quase sempre simplesmente apressava o passo, de cabeça baixa. Às vezes ele até atravessava a rua para me evitar. Uma constante massa de fãs vinha visitá-lo. Eles frequentemente batiam em nossa porta. 'É aqui que mora o Syd?' Nós dizíamos que não. A gente sabia que ele não queria ser perturbado e que, se fosse, poderia mandar todo mundo à PQP. Os fãs às vezes não aceitavam um não como resposta e batiam na sua porta com força. Geralmente não havia resposta, mas de vez em quando ele abria a porta, provavelmente por engano. Ele podia até bater a porta na cara dos fãs assim que percebesse quem eles eram.

Seu psicológico se deteriorou depois da saída de sua mãe. Ele não se preocupava em abotoar sua camisa, se ao menos ele se preocupasse em usar uma. Usava calças que eram muito grandes pra ele. Ele parecia descabelado. Nós às vezes o vimos andando na rua usando apenas a parte de baixo do pijama. Ele parecia viver de cafés-da-manhã gordurosos e frequentemente deixava sua frigideira queimar. Nós podíamos ver as chamas alcançando o teto da cozinha mas não havia sinal de Syd. Ele tinha uma concepção nada segura a respeito do fogo.

Ele bebia muito, provavelmente uma garrafa de Whisky por dia. Syd era também um fumante inveterado. Quando adolescente eu trabalhei na agência de notícias local. Syd entrava lá quase todo dia atrás de cigarros. Ele sempre comprava 60 e às vezes levava tabaco a granel e fumo de corda também. Ele comprava marcas diferentes em cada vez, pedindo por '20 Rothmans, 20 B&H, 20 Embassy no.1', ou '20 JPS, 20 Embassy Regal, 20 Marlboro'. Ele pegava os cigarros e saía sem falar mais nada. Ele nunca levava dinheiro, mas deixava grandes contas que sua irmã costumava pagar. Até então, eu sabia quem ele era e achava difícil de conciliar sua reclusão na meia-idade, e os enormes problemas em se relacionar com o mundo, com o músico boa-pinta que eu vi sorrindo em fotos antigas. Como o autor de letras poéticas ricas em imaginação surreal poderia estar reduzido a alguém que malmente conseguia formar uma frase completa? Eu tinha lido o suficiente pra saber que a crítica atribuía isso a um colapso causado pelo LSD no auge de sua fama. Syd era um exemplo vivo do perigo que causam as drogas.

Em uma ocasião ele veio até a loja onde uma revista de música trazia uma foto do Pink Floyd da época de Syd na capa. Eu disse a Roger - seu nome real, Syd era um apelido - 'Você está na capa da Mojo hoje, Roger.' Ele pareceu surpreso. 'Eu ficarei com ela', ele disse. Tive a impressão que ele havia gostado. Nos 25 anos em que morei na Praça St. Margaret, eu o vi sorrir apenas uma vez. Foi nos anos 90, quando eu comprei um Lancia Delta HF Turbo - uma réplica do carro de rali que a Martini patrocinava nos anos 80. Eu estava muito orgulhoso e um dia eu estava lavando o carro, segurando uma mangueira em cima do telhado, portanto a água formava uma cascata. Syd veio de seu jardim e ficou me olhando com um grande sorriso em seu rosto. Ele não era conhecido como um entusiasta do automobilismo - seu único 'veículo' era uma velha bicicleta surrada. Eu creio que a cena o alegrou porque ele achou que eu estava regando meu carro, como se ele fosse uma planta. Talvez isso o tenha levado de volta aos seus anos 'hippies', afogados no LSD.

Mas ele não era de todo ruim. Quando ele não estava tendo um de seus ataques, ele era bem quieto. Eu nunca ouvi sua televisão. Eu o ouvi tocar (ouvir) música um punhado de vezes - e sempre música clássica ou jazz moderno, nunca pop ou qualquer trabalho próprio seu.

Nos seus últimos anos, seu comportamento se tornou menos errante e a gritaria também parou. Ainda havia uma fogueira de vez em quando. Nós até recebemos alguns cartões de Natal dele. Ele mesmo os fez, desenhos de Natal lindamente feitos - sinos e plantas características do Natal em um cartão branco. 'Tenham um Natal muito feliz, de Roger', dizia a mensagem. Um ano, quando eu li no jornal que era seu aniversário, eu deixei um cartão na sua caixa de correio. Quando o vi depois ele disse 'oi' e fixou seu olhar no meu por alguns segundos. Ele parecia estar me agradecendo. Depois disso eu parei de temê-lo. Eu sabia que ele tinha uma alma profundamente perturbada, precisando de simpatia mais do que qualquer outra coisa.

Syd morreu em casa em julho, devido a complicações crescentes de sua diabetes. Ele tinha 60 anos e esteve no Hospital de Addenbrooke por mais ou menos três semanas antes disso. Sua irmã nos disse que quando ele voltou pra casa ele precisaria de uma enfermeira que morasse lá para cuidar dele. Ele ficou em casa apenas um dia e meio e então faleceu. Sua casa foi recentemente vendida e eu fui vê-la enquanto ela estava à venda. As cores da casa poderiam ser descritas como interessantes - um quarto é laranja, outro azul, vários são uma combinação de laranja, azul e rosa - e a cozinha é a prova das aventuras frustradas de Syd quanto ao 'faça você mesmo': prateleiras frágeis e com formatos estranhos. Uma imagem me encanta. Um hipopótamo de brinquedo estava pregado a uma das fechaduras. Isso era típico de Syd: misterioso, bizarro e um pouquinho, bem, louco. Eu sinto muito que ele tenha morrido - mas não sentirei saudades.

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